Rua do Saco

Junho 01 2011

 

 

 

Há alguns anos, mais do que desejo recordar, fui em viagem de trabalho, ao serviço de uma empresa minha cliente, aos Estados Unidos.

 

Já não me lembro das datas. Deve ter sido pelos anos oitenta ou noventa do século passado.

 

A minha cliente era uma construtora metalomecânica de surpreendente prestígio internacional, fortemente exportadora.

 

Tinha construído, por exemplo, o que foi durante muitos anos o pórtico rolante de maior vão no mundo ocidental, e o segundo em todo o mundo, e que foi instalado nos Estados Unidos.

 

Já não tem actualmente actividade industrial. Claro.

 

Portugal estava, na altura, sob a intervenção (protecção?) (gestão?) do famoso e famigerado F.M.I..

 

A cara da intervenção era a de uma senhora, que há pouco tempo visitou o nosso País: Teresa Ter Minasien (Julgo que é assim que se escreve. Que me perdoe, se erro. Não é por menos respeito: é mesmo ignorância.).

 

Uma das medidas impostas pelo F.M.I. foi a não validade dos cartões de crédito dos cidadãos Portugueses fora de Portugal.

 

Para quem tinha que viajar no estrangeiro, era, de facto, uma medida muito incómoda.

 

A viagem durou uns dez dias, e tive que viajar com traveller´s cheques e notas grandes de Dólares, que a empresa obteve na Banca segundo a legislação então em vigor, num montante que cobrisse com segurança as minhas despesas de deslocações, alimentação e alojamento, e ainda algumas refeições de circunstância que eu teria que oferecer a algumas entidades que iria contactar.

 

Não dava jeito nenhum, além de não me sentir nada seguro, a viajar com tanto dinheiro num País para mim quase só conhecido pelo cinema.

 

Imaginem a cena:

 

Entrei no Hotel Tropicana, em Las Vegas, Nevada, minha primeira paragem. Meio tonto. Seriam umas nove horas da noite locais, seis da manhã em Portugal e no meu relógio biológico.

 

O porteiro, de imponente uniforme, indicou-me o caminho para a recepção: eu teria que atravessar o enorme hall rebocando a minha Bobby (designação carinhosa de uma Samsonite que usava na altura) por entre “slot-machines”, mesas de “craps” e “black-jack”, roletas e outras a perder de vista, até chegar ao balcão da Recepção para fazer o “check-in“.

 

Aí chegado, uma colorida e exuberante loura deu-me as boas vindas, e após verificar a minha reserva, pediu-me o cartão de crédito para fazer um “print”.

 

Primeira dificuldade!

 

Expliquei-lhe que podia dar-lhe o meu cartão, sem qualquer problema, mas que o meu cartão não era válido fora de Portugal (o meu País, de que ela, talvez por delicadeza, disse já ter ouvido falar).

 

O colorido sorriso desapareceu e deu lugar a uma silenciosa expressão, misto de espanto e de desconfiança.

 

Eu acho que toda a sala parou. Slot-machines, craps, roletas, gritos histéricos de regozijo, tudo parou.

 

Quase se ouvia apenas o ruído da colorida e exuberante loura a processar a informação.

 

A exuberante loura continuava sem compreender a situação.

 

Receoso do meu Inglês, repeti devagar a explicação já dada, e relativa a um misterioso cartão de crédito que só era válido em Portugal (o tal País de que ela, talvez por delicadeza, disse já ter ouvido falar).

 

Decididamente, sem sucesso. Não sei mesmo (já foi há bastante tempo, era tarde, e eu estava muito cansado), se não vi algum fumo resultante do tal esforço no processamento da informação.

 

A colorida loura continuava a não dar mostras de estar programada para entender a estranha situação, que, claramente, excedia o âmbito da sua compreensão e competência.

 

Foi essa a conclusão a que finalmente chegou, pedindo-me que esperasse um momento para ir falar com o chefe.

 

Assim fez: entrou por uma porta existente no fundo do balcão e, após algum tempo, apareceu na mesma porta com um senhor muito bem posto que a acompanhou na expressão de espanto, enquanto ela apontava na minha direcção.

 

A sensação que tive deve ser semelhante à de um extra-terrestre que saído do seu ovni, pretende fazer o check-in num hotel terrestre.

 

Finalmente, ganharam coragem e vieram falar comigo: eu teria de explicar ao senhor muto bem-posto aquilo que já tinha explicado à colorida e exuberante loura.

 

Claro que expliquei.

Mas percebi que, naquele País, acontece que há quem viaje sem cartão de crédito: só que, ao que parece, os malfeitores, assaltantes de Bancos e fugidos à polícia não são clientes do Tropicana.

 

O que não está previsto é que haja quem viaje com cartões de crédito sem validade.

 

Era suspeito não se ter cartão. A situação de cartão válido só num determinado País não era suspeita. Era (julgo que ainda é) desconhecida. Não estava prevista.

 

Retiraram-se. A loira e o senhor bem-posto, para conferenciar.

 

Algum tempo depois, regressaram.

(Suponho que acabaram por decidir que não tenho ar de assaltante de Bancos, e por isso, não chamaram a Polícia.)

 

Com um depósito em “cash” e “traveller´s cheques num montante equivalente ao triplo da estadia prevista, o problema resolveu-se.

 

A verdade é que a medida era bastante desmotivadora de viagens, e de gastar invisíveis correntes no estrangeiro.

 

Só viajava quem tinha mesmo que o fazer.

 

Hoje, a situação é completamente diferente. Existem os voos “low-cost”, inexistentes na época.

 

Viajar é uma vulgaridade, ao alcance de toda a gente. Vendem-se viagens a crédito, e cartões, obtêm-se os que se queiram. Basta ir aos centros comerciais, e nem é necessário pedir. São os angariadores que lá estão e que nos interpelam, oferecendo-os, que tratam de tudo, sem qualquer incómodo para os novos clientes, para além de serem interpelados. Ou mesmo nem isso. Continuo a receber em minha casa cartões que nunca pedi, com facilidades que não solicitei, e apelos ao seu uso, a que apenas resisto, porque os destruo imediatamente.

 

Que me seja perdoada a ignorância.

 

Mas a ignorância é muito atrevida.

 

A medida tinha vários efeitos importantes do ponto de vista da poupança:

 

- era desmotivadora das viagens supérfluas, viajando apenas quem tinha de o fazer, por razões profissionais, de saúde, ou outras de força maior.

 

- era desmotivadora das despesas em viagem, pela razão anterior, e pela desmotivação resultante de transportar dinheiro vivo, com os riscos inerentes.

 

- promovia (protegia) o turismo interno (“vá para fora cá dentro”).

 

Não sei quantificar estes efeitos. Mas pergunto-me:

 

Já teria sido feito o exercício?

 

Mais uma vez, que me seja perdoada a ignorância, mas julgo que a medida é de facílima aplicação, e isenta de custos, não exigindo os investimentos, por exemplo, da cobrança das portagens nas scut.

 

Tanto quanto julgo saber (reserva já feita à ignorância) a medida é de simples e fácil implementação, apenas através de uma instrução por via electrónica, baseada no número dos cartões, como aliás foi feito na época do episódio que aqui relatei.

 

Sei que em Economia, nada é linear, e muita coisa que parece, não é. Há sempre uma razão para tudo e para o contrário de tudo, por vezes a mesma razão.

 

Não há nada a inventar. Está tudo inventado e experimentado.

 

Os meus conhecimentos de Economia escrevem-se na mortalha de um cigarro: se eu tenho apenas um quilo de batatas, não posso comer dois. Posso vir a comer mais do que um quilo, mas só depois de comer apenas uma parte do que tenho, descascando com pouco desperdício, semeando a outra parte, tratando e trabalhando o batatal, e só algum tempo depois, se tudo correr bem, terei mais do que o quilo inicial. Simples!

 

A menos que hajam efeitos secundários, colaterais, ou de razões de natureza misteriosa, não percebo porque não é implementada a medida.

 

Ou, pelo menos, estudada.

 

Que me seja perdoada a ignorância que, já sei, é muito atrevida.

publicado por jpargana às 16:10

Este blog é uma colectânea de reflexões do autor sobre temas de interesse geral e da sociedade e ambiente que o rodeiam.
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