Vi (ninguém me contou) uma reportagem da Sic Notícias sobre o rescaldo dos distúrbios da tarde e noite de 14 de Novembro.
Fiquei a saber, afinal, quem tinha deixado o rasto de destruição em frente da Assembleia (que já foi Nacional e que agora é só da República) e nas ruas adjacentes.
A menina jornalista (certamente detentora de uma licenciatura, mestrado ou doutoramento em Comunicação Social, que me perdoe por não lhe ter fixado o nome) repetiu por diversas vezes, enquanto nos mostrava o estado em que aquela zona da cidade ficou:
- “…o rasto de destruição deixado pela passagem da carga policial…”
Fiquei atónito.
Afinal, os meus olhos, que viram as transmissões em directo, enganaram-me!
Afinal, quem deixou o rasto de destruição foi a carga policial!!
E veio à minha memória uma história que se contava no Estado Novo:
Era o tempo em que os jornalistas não tinham licenciatura, mestrado ou doutoramento em coisa nenhuma. Eram semianalfabetos, lacaios do Poder, que vendiam a sua consciência por migalhas.
Um dia, um leão fugiu do Jardim Zoológico e, após espalhar o pânico por toda a cidade, foi ter ao Rossio.
Após debandada de toda a gente que naquela Praça se encontrava, um pacífico freguez do café Nicola, pousou a sua chávena de café (de saco) ainda por terminar e enfrentou a fera.
Após terrível combate, o nosso herói dominou a fera, acabando a peleja com a morte da besta, regressando o homem ao Nicola onde nova chávena de café (de saco) recém-passado lhe foi servida (agora, por oferta da casa).
Lavrou grande regozijo na Baixa e veio gente de longe e de toda a cidade aclamar o herói.
E veio também um jornalista do defunto “Diário da Manhã” entrevistá-lo.
Perguntou-lhe se era graduado da Legião Portuguesa, pois só um membro dessa instituição teria a coragem de enfrentar uma situação semelhante.
O homem respondeu que não, que não pertencia à Legião, que não se metia nessas coisas, que o seu interesse era apenas trabalhar e ganhar honestamente o sustento dos seus.
O jornalista perguntou-lhe a seguir se era membro da União Nacional.
Mais uma vez o homem respondeu que não, que a política não era coisa que o atraísse. Que o seu interesse era a família e que só muito depois vinha algum entusiasmo, por exemplo por futebol, indo ver de vez em quando um joguinho do Sporting, do Benfica, do Belenenses ou do Carcavelinhos.
O jornalista continuou a entrevista perguntando-lhe se tencionaria inscrever-se na milícia e no movimento cívico já mencionados, pois certamente para tal iria ser convidado, na sequência da coragem demonstrada na luta contra o leão.
Já atrapalhado, o homem foi-se esquivando, dizendo que não tinha jeito para a política, que a sua política era trabalhar para ter uma vida sossegada, honesta e em paz com a sua família, ter a sua licença de isqueiro e a carta e matrícula da bicicleta em ordem, e que não se sentia preparado nem merecedor da honra de ser membro daquelas organizações.
Insistiu o jornalista que então certamente era apoiante incondicional de Sua Excelência o Sr. Presidente do Conselho e do Estado Novo, pois só isso era de esperar de alguém capaz da façanha que acabava de se verificar.
O homem, cada vez mais atrapalhado, lá foi dizendo que a sua opinião política não tinha o menor interesse, que a sua vida era casa/ trabalho e trabalho/casa sem fazer ondas nem se meter em outras aventuras que não fossem de vez em quando, um joguinho de futebol.
O jornalista, finalmente, entendeu que já tinha a sua reportagem e entrevista.
No dia seguinte o Diário da Manhã noticiava:
“Leão barbaramente assassinado por um comunista”