Ando com a desagradável impressão de que já não se contam fábulas às nossas crianças.
Hei-de, um dia destes, pedir aos meus netos que me mostrem os seus livros escolares. Se não a encontrar em nenhum deles, vou-lhes contar pelo menos, a da cigarra e a formiga.
Claro que vão achar que sou um chato, um cota. Não faz mal. Acho que vou prestar-lhes um serviço.
E as minhas filhas, quando lerem o que a seguir vou contar, vão dizer que sou um deslumbrado pelo que é estrangeiro, e que acho que tudo o que é estrangeiro, principalmente do norte da Europa, é que é bom.
Confesso: algumas das coisas que vi nesses países causam-me alguma inveja: a maneira como respeitam os sinais de trânsito, como estacionam os carros, como respeitam os direitos dos outros, como entendem as relações profissionais e de trabalho, como exercem a cidadania.
Causa-me inveja, por exemplo, que aqueles povos não achem normal (como por cá se acha) que os políticos se arroguem o direito de nomear amigos, companheiros de partido ou familiares para cargos públicos “de confiança política”, cargos esses muitas vezes inventados.
Causa-me inveja, por exemplo, saber que, quando há mudança de partido no poder, apenas uma pequena parte (a cabeça, claro) do aparelho de Estado muda. Mas permanece o fundamental do aparelho produtivo, constituído por profissionais.
Sem prejuízo de concordar com o meu amigo Giovanni Prest, italiano (romano?) dos cinco costados de boa memória, quando me dizia, a propósito da maneira como eles comem, e, principalmente, bebem: - Compreendes agora porque é que lhes chamávamos “bárbaros”?
Mas… perguntarão: - O que tem isto a ver com a cigarra e com a formiga?
Já verão!
Deslumbra-me a mania, generalizada naqueles povos, de não brincar em serviço. Gozam rigorosamente as suas férias, mas trabalham o resto do ano com maior rigor, num clima agreste.
Fui por várias vezes a reuniões de trabalho a uma pequena cidade sueca chamada Kalmar.
Não vou cansar quem me leia com uma descrição de Kalmar.
Uma pesquisa na Internet será muito mais esclarecedora. Isso e uma visita pelo Google Earth.
Vou dizer apenas que se trata de uma pequena cidade histórica situada junto ao mar Báltico, onde não falta nada do que têm as grandes cidades, excepto os inconvenientes destas.
Existem vários jornais diários que as pessoas lêem com interesse e normalidade, e vida cultural intensa. Nada é deixado ao desleixo, tudo é muito limpo e arrumado. Nada está fora do seu lugar. Não há ruínas.
A empresa que eu visitava era (pela escala Portuguesa), de média/grande dimensão. Era uma sociedade anónima, controlada, na altura, por um fundo de investimentos.
Havia o cuidado de se realizarem as reuniões no Verão, por razões óbvias: a grande maioria dos visitantes participantes vinham de latitudes mais baixas.
Mas… afinal… e a cigarra e a formiga?
É que, imagine-se, o Presidente da empresa se deslocava de casa para a fábrica de bicicleta, aliás, como a maioria dos executivos e demais colaboradores.
Como aliás era normal em toda a cidade. Fazia-o, está claro, não por uma questão de poupança de combustível, mas por uma questão cultural. Era normal.
Não se sentia menos importante por isso. O seu ascendente e a afirmação da sua posição perante os subordinados, ou perante a sociedade não dependia de se deslocar num carro de alta gama. Dependia dos resultados e do progresso da empresa.
Claro que tinha carro da empresa, que era utilizado quando se justificava.
De facto, sou um deslumbrado com algumas coisas desses países estranhos.
Não. Não defendo que os dirigentes das nossas empresas se desloquem de bicicleta.
O que defendo é que a austeridade devia fazer-se com o exemplo vindo de cima.
Que se fizesse um estudo sério de quantos cargos são preenchidos “por confiança política”
Que se averiguasse da necessidade, em cada um, de ser esse o critério para a escolha.
Que se avaliasse da necessidade da existência de cada um desses cargos.
E para cada um, quantos secretários ou secretárias são necessários.
E para cada um, quantos assessores se justificam.
E quantos carros?
São todos realmente necessários?
E quantos motoristas?
Seria certamente muito interessante ver onde chega a bola de neve dos cargos de “nomeação por confiança política”
Não há economia, não há País que resista ao indecoroso espectáculo, justificado pela “confiança política”, das nomeações para milhares de cargos, das mais diversas categorias, e das mordomias (carros, combustíveis, viagens, cartões de crédito, telemóveis) a eles inerentes, mas na sua maioria, não essenciais nem justificados para o exercício do cargo.
E isso, sempre que, na sequência de eleições muda o partido no poder, empurrando os nomeados pelo anterior partido para uma dispendiosa prateleira.
Não há país nem economia que resista.
Só quando se profissionalizarem as empresas e instituições (incluindo a administração pública e local), quando elas forem despolitizadas e tornada independentes dos partidos, poderei pensar em deslumbrar-me também com o meu País.
Tenho pena que, se isso acontecer, eu já não tenha a oportunidade de ver.